A hora da verdade para a Lei dos Distratos

Incorporadoras esperam que regulamentação seja bem sucedida em seu primeiro grande teste

Por Redação Em:

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Por Chiara Quintão

Embora, no mercado, haja preocupação que o grande volume de entregas dos empreendimentos residenciais previsto para 2023 possa resultar em aumento expressivo das rescisões de vendas de imóveis, incorporadoras avaliam que a Lei dos Distratos – sancionada pelo ex-presidente Michel Temer em 2018 – deverá ser bem sucedida em seu primeiro grande teste de eficácia. 

 

“A lei está sendo aplicada, apenas com um ou outro questionamento”, afirma o empresário Rubens Menin, fundador da MRV&Co e presidente do conselho de administração da maior incorporadora do país. 

 

A legislação em vigor definiu que, em caso de desistência de unidade residencial comprada na planta, o cliente perde até 50% do valor já pago. A potencial perda de percentual significativo inibiu as rescisões voluntárias por parte de compradores de imóveis. 

 

Durante a crise dos distratos, a principal razão para as rescisões terem atingido uma proporção sem precedentes foi a queda dos preços dos imóveis a partir de 2014 – em uma das muitas turbulências vividas pelo país. 

 

A desvalorização estimulou rescisões voluntárias por parte dos compradores, com a intenção de, muitas vezes, usar os recursos para a aquisição de outra unidade. Para atrair clientes para os apartamentos distratados, incorporadoras ofereciam mais descontos e acabavam estimulando novas rescisões.

 

Diferentemente daquele momento, os preços dos imóveis seguem pressionados em um cenário em que as incorporadoras vêm repassando, ainda que de forma parcial, os aumentos de custos de materiais e mão de obra para os valores das unidades.

 

“Não estamos vivendo uma crise terrível de desemprego. As pessoas têm feito esforço para conseguir quitar o imóvel”, diz Rodrigo Cagali, vice-presidente de operações e diretor financeiro da Mitre Realty. No terceiro trimestre, as rescisões da companhia cresceram 34%, na comparação anual, para R$ 45,5 milhões, mas Cagali diz não ver “muitos riscos de crescimento substancial” dos distratos. 

 

Até a conclusão das obras de um empreendimento imobiliário dos padrões médio e alto, o comprador de uma casa ou de um apartamento paga prestações corrigidas pelo Índice Nacional de Custo da Construção (INCC) à incorporadora que desenvolve o projeto. 

 

Quando o imóvel fica pronto e o consumidor recebe as chaves, sua dívida é repassada a um banco ou a outra instituição financeira. De modo geral, é neste momento que ocorrem a maioria dos distratos.

Juros

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Em períodos de juros mais elevados, há risco de o valor a ser pago no pós-chaves fique muito acima das parcelas cobradas pelas incorporadoras durante as obras a ponto de resultar em desenquadramento da renda do cliente ao repasse. “Juros altos aumentam o risco de distratos”, afirma Rogério Santos, um dos fundadores da UBlink. 

 

Na reunião de outubro, o Comitê de Política Monetária (Copom) optou, pela segunda vez, pela manutenção da Selic. Antes disso, foram anunciadas 12 altas consecutivas da taxa básica de juros, com aumento gradual de 2% para 13,75% da taxa básica. Na mesma base de comparação, os juros do financiamento imobiliário passaram de 6,5% mais TR para 9,5% mais TR. 

 

Ou seja, mesmo que em proporção menor do que a da Selic, o crédito habitacional ficou mais caro como consequência das decisões tomadas pelo Banco Central (BC) para controlar a inflação. Na reunião desta semana, a autoridade monetária deve anunciar nova manutenção da taxa básica.

 

O fundador da UBlink ressalta que quem compra um imóvel compacto para investir aposta que o valor da parcela a ser paga será inferior ao obtido na locação. Se, por conta dos juros elevados, as prestações ficam muito mais altas do que o valor recebido pelo aluguel, o negócio se torna menos interessante, com maior risco de distrato. 

 

A falta de clareza em relação ao cenário eleva a possibilidade de rescisões, acrescenta Santos. Mas espera-se que, até meados de 2023, o Copom possa voltar a reduzir a Selic, o que favorece o mercado imobiliário e reduz a chance de o cliente querer ou precisar cancelar a compra.

Expectativas das incorporadoras

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A Trisul tem duas grandes levas de entregas de empreendimentos programadas: uma de alto padrão para o próximo ano e outra de médio-alto padrão para 2024. Não há preocupação, segundo o diretor de marketing e inteligência de mercado, Lucas Araújo, com crescimento dos distratos na safra de sete projetos a ser concluída em 2023, pois a maioria dos clientes já quitou as unidades ou terá 60% do pagamento realizado no momento das chaves. 

 

Em relação aos empreendimentos com entrega prevista para daqui a dois anos, a ocorrência de distratos dependerá, conforme Araújo, dos juros. “Mas a tendência é de queda da taxa”, afirma o executivo da Trisul.

 

A Even tem forte atuação nos segmentos médio-alto e de luxo. Assim como ocorre com a Trisul, a fatia paga pelos clientes até às chaves, nos imóveis de maior valor, supera o percentual pago por consumidores de média renda. “Seria um prejuízo financeiro muito grande se o cliente resolvesse distratar a unidade”, afirma Marcelo Dzik, diretor executivo de incorporação.  

 

O público de renda mais alta depende menos de crédito para a compra de imóveis, o que também limita a possibilidade de cancelamentos de vendas.

 

A Even tem, neste ano, seu maior volume de entregas de empreendimentos lançados no último ciclo. No trimestre, os distratos da companhia cresceram 37%, para R$ 74 milhões. “Não há nenhum indicador de piora estrutural dos números que estamos vendo agora. Nossa carteira está bastante saudável”, conta Dzik. A Even tem revendido as unidades que voltam à sua carteira.

 

O fato de os preços dos imóveis não estarem em queda é uma das razões apontadas por Dzik para a expectativa de que não haverá nova crise dos distratos. “O consumidor está mais consciente. A lei deixa a negociação mais clara na pré-judicialização”, afirma. Nas situações recentes em que empresas do setor precisaram discutir a questão na Justiça, acrescenta o executivo da Even, as regras foram respeitadas.

 

A Tegra registrou aumento de 53% nos distratos, para R$ 40,47 milhões no trimestre. Considerando-se a parcela dos sócios nos projetos, as rescisões chegaram a R$ 62 milhões. 

 

Desse total, R$ 42 milhões foram, de fato, cancelamento de vendas, enquanto R$ 20 milhões resultaram de migrações dos clientes para unidades de outro valor comercializadas pela companhia. Em relatório, a Tegra informou que metade das unidades distratadas por conta de migração já foram vendidas.

 

Os distratos da Moura Dubeux cresceram 37,5%, para R$ 36,5 milhões. A expansão deveu-se, segundo o diretor financeiro e de relações com investidores, Marcello Dubeux, à entrega de dois projetos, no Ceará, lançados em 2014, que tiveram atrasos de obras devido à crise financeira vivida pela companhia anteriormente à sua oferta inicial de ações (IPO). 

 

“Neste trimestre, vamos entregar, com um ano de antecipação, o primeiro projeto lançado após o IPO”, compara Dubeux. No entendimento do executivo, há clareza, no mercado, de que empreendimentos lançados depois de a Lei dos Distratos ter sido sancionada serão tratados de forma distinta dos apresentados antes da regulamentação.

Histórico e regulamentação

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Os distratos – principalmente de imóveis de médio padrão – começaram a crescer há dez anos, quando teve início o primeiro ciclo de entregas de empreendimentos após a onda de IPOs do setor e acabaram se tornando o maior problema do setor até 2017.

 

O volume até então desconhecido de distratos se refletiu em explosão do número de processos de consumidores contra incorporadoras, necessidade de aumento de provisões, reversão de receita, pressão de margens e piora do resultado líquido do setor. 

 

A combinação desses fatores contribuiu para que companhias como Viver e PDG (atual ix) tivessem de recorrer ao mecanismo de recuperação judicial. Recentemente, foi a vez de Rossi Residencial buscar essa forma de reestruturar suas dívidas.

 

No fim de 2018, foi sancionada a Lei dos Distratos depois de longo período de negociações acirradas entre entidades representantes de incorporadoras, órgãos de defesa do consumidor e participantes do governo a respeito da base de cálculo para a cobrança de penalidades para os compradores de imóveis em caso de rescisão do negócio. 

 

Enquanto as empresas defendiam que a multa incidisse sobre o valor total da unidade, órgãos de defesa do consumidor pleiteavam que a referência fosse o pagamento realizado até a rescisão. Após muitas negociações, ficou definido que, em caso de distratos de imóveis residenciais, a multa cobrada do comprador pode chegar à metade do valor desembolsado. 

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